Ana Vífer

Ana Vífer

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Deixa...

Deixa que eu invada sua mente, sua memória, que meu cheiro invada suas narinas e que impregne sua roupa. Deixa que eu me meta nos seus papéis, que eu mexa nos seus discos, que fuce nos seus livros. Deixa que eu molhe seus olhos, seus lábios, que reluza seu sorriso na luz do meu olhar, que só brilha porque te avista chegar.
Deixa que eu cutuque sua mente, catuque seu samba, futuque seu coração e ache no fim das batidas o início do resto da minha vida. Deixa que eu volte sem ter que ir, deixa que eu afague seu peito no leito em horizontal, amor da minha eternidade. Deixa que eu seja seu quintal, a caixinha de fósforo que swinga cada canção, o sabor de melancia no beijo de limão.
Deixa que eu sujeite meus dias aos seus, deixe que eu entre e invada todos os cômodos sem reserva. Deixa que eu mude o canal e a cor do céu, anoiteça ao meu lado, eu amanhecerei dentro do seu coração. Deixa que eu dê seus medos aos ventos e que enraíze minhas vontades dentro de você.
Deixa eu mexer com seu juízo e que eu dê prejuízo no seu maxilar de tanto rir, rir de se acabar. Deixa eu comer na tua mão, tirar seus pés do chão, deixa eu te mostrar como é fofinha uma nuvem de algodão.
Me permita, só hoje, que eu seja sua marmita de arroz e feijão. Me permita pra sempre ser a semente que dá no seu chão, que cresce regada à olhadas despretensiosas e palavras desejosas, deixa que eu seja seu bem estar, sua sala-de-estar, seu hall, seu avião.
Porque amor, eu gosto de ser tudo o que for seu, desde o Apolo até Prometeu, mitologia sacra dos seus dias, eu gosto de ser alguém se eu for personagem da sua realidade. Deixa eu virar do avesso seus avessos, revelar seus retratos e botar cada um na parede da minha história. Deixa eu esconder nossos diálogos num frasco, deixa eu morder a maçã da sua face, adormecer nos seus braços.
Eu quero ser tudo o que for de você, ter tudo o que for seu, deixa?
Eu... Eu sou sua imaginação pura e primitiva, sua lembrança intuitiva, seu cansaço, seu amasso, seu trabalho e não tenho dó. Sou sua voz emitida, sua risada sentida, seu choro rasgado, seu cartão estourado, seu terno remendado, seu sapato folgado, seu dia ensolarado, seu desejo encarnado. Sou sua loucura, sua noite sem dormir pensando em mim, o choque da fissura, refém e frisson.
Então deixa que eu seja, que eu seja a paz, que eu seja o caos, importa que eu seja sua desde o que se chamou ontem até o que se chamará "para sempre".